quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Uma "dose" de Fernando Pessoa

Se ontem à tua porta
Mais triste o vento passou
Olha: levava um suspiro
Bem sabes quem te mandou...

Dias são dias, e noites
São noites e não dormi
Os dias a não te ver
As noites pensando em ti.

Levas uma rosa ao peito
E tens um andar que é teu
Antes tivesses o jeito
De amar alguém, que sou eu.

Tens um livro que não lês
Tens uma flor que desfolhas
Tens um coração aos pés
E para ele não olhas.

O malmequer que arrancaste
Deu-te nada no seu fim
Mas o amor que me arrancaste
Se deu nada, foi a mim.

A rosa que se não colhe
Nem por isso tem mais vida
Ninguém há que te não olhe
Que te não queira colhida.

Tenho vontade de ver-te
Mas não sei como acertar
Passeias onde não ando
Andas sem eu te encontrar.

Vai alta a nuvem que passa
Vai alto o meu pensamento
Que é escravo da tua graça
Como a nuvem o é do vento.

As gaivotas, tantas, tantas
Voam no rio pro mar
Também sem querer encantas
Nem é preciso voar.

Todos os dias que passam
Sem passares por aqui
São dias que me desgraçam
Por me privarem de ti.

Tenho um livrinho onde escrevo
Quando me esqueço de ti
É um livro de capa negra
Onde inda nada escrevi.

Nuvem alta, nuvem alta
Porque é que tão alta vais?
Se tens o amor que me falta
Desce um pouco, desce mais!

A luva que retiraste
Deixou livre a tua mão
Foi com ela que tocaste
Sem tocar, meu coração.

A tua janela é alta
A tua casa branquinha
Nada lhe sobra ou lhe falta
Senão morares sozinha.

Fonte: Poesias coligadas - Quadras ao gosto popular

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