sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Poetizando a vida

Quando me for na suavidade do esquecimento pedirei a Deus
Que permita que eu me desnude de mim sem pressa
Mesmo com a premência da partida
Que Ele me dê um novo tempo para tirar de minha alma
As vestes com que me cobri
Umas mais leves, outras pesadas, todas desnecessárias.

Quero desfazer-me das ilusões, dos perdões, das culpas
Das santidades, dos pecados, das desilusões
Das translúcidas sedas das angústias.

Livrar-me das camadas de ira, vinganças sem memórias
Dos tecidos enrijecidos – quase metais –, imobilizados pelo medo
Ansiedade pelo próximo instante, lembranças emotivas
Saudade, arrependimento, pressa, preguiça, desesperos
Sentimentos que se desfizeram e morreram
Mas deixaram poeira nos caminhos por onde passaram.

De tudo vou querer me livrar: dos conceitos, preconceitos
Leitura vil dos olhares em segredo, minha voz
Dizendo aos meus ouvidos mentiras atordoantes
O apego ao que era transitório, vaidades bobas
Dias que não deixei partir.

Deitar ao chão esculturas e versos, romances de fogo e gelo
Cenas dos palcos inebriados, mares de abandonos e sonhos
Peixes nas redes dos pescadores, salmos, círios
Reflexões e hinos, espíritos vagando pelos templos
Vida e morte curvadas nas rocas fiando lentamente
Eternidades, abismos e ventos.

Com o mesmo cuidado com que deposito na terra
Poemas que não escrevi, ali também colocarei
Trapos de luzes e oiros, o olhar mais terno
Palavras duras de meus lábios desprendidas
Gestos de aproximação e desprezo, vilania de friezas.

Rios de emoções que me envolveram, sabores dos frutos
Agonias das madrugadas, fotografias esmaecidas
Paisagens ambicionadas, alquimia dos alimentos
Águas que me lavaram e jamais levaram
As vestes com que me vesti.

Quero me despir da vida
Daquilo acumulado nos escaninhos do peito
Na esperança – vã? – do nada, talvez esteja pronto
Para atender ao chamado de Deus
Em meu completo abandono.

Seguirei ao encontro do Mistério
Eu, rastro de luz e tempo
Esquecido de toda alegria, expectativa, lamento
Apenas indo, nu, olhos vazados, na suavidade do esquecimento.

Zeca Corrêa Leite é jornalista, especialista em cultura.
http://micropolis.blogspot.com

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